08 novembro 2006

telhado de vidro


Só os santos podem ajudar o povo em...

telhado de vidro
a tragicomédia
(para novela, minissérie ou cinema)

Em 1971, Libório é escolhido pelo bispo de Salvador para substituir Malaquaias, pároco que falecera em São José da Catinga, pego de surpresa por um espinho no pé, que inflamou, gangrenou e rapidamente o enterrou. Que Deus o tenha em bom lugar, pois o fato é que sua morte estava escrita. Se não fosse por ela, nosso herói não cumpriria sua história de tormento e glória, coisa para qual o padroeiro da cidade já o tinha designado nos escritos do Profeta Moraes Moreira, enviados as suas mãos por um inglês ignorado.

Em português, as profecias afirmavam que cinco missionários combateriam o mal, personificado em um morador da pacata e fedorenta cidade; este era o Diabo em pessoa. Detentores do extraordinário, cada um deles teria aguçada percepção de um dos sentidos.

Padre Libório é o do tato, guardião dos três irmãos que, no futuro, o ajudarão a destruir Demóstenes Fogueira, dono do Grande Hotel da Catinga, vilão dos infernos que lhe lança uma maldição que perdurará por trinta anos: conviver com uma catinga de bode em todo corpo, sem pulsação nem batimentos cardíacos, feito um defunto esquecido pela cova.

João Maria, Guido e Samir são gêmeos que desconhecem a existência um do outro, eles têm diferentes destinos comprometidos com uma surpreendente história sobrenatural, mas só se encontram em 2001, alguns meses antes de completarem vinte e sete anos.

João Maria Callado, ou Joãozinho, como Ondina o chama desde bebê, é avesso ao trabalho e vive esperando o milagre dos incautos, gastando no chique da praia, e não é à-toa que é um trambiqueiro profissional caçado por muitos comerciantes da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua mãe adotiva também é uma golpista que, entre outras coisas, finge ser cartomante de mão cheia. Ele tem o olfato excepcional, e só irá entender o porquê desse dom quando sentir o enxofre que aponta quem é o real inimigo. Não foi isso que Joãozinho pediu a Deus? O Todo Poderoso tarda, mas nunca falha.

Único herdeiro do Império Wells, uma multinacional do ramo da construção civil, Guido Valente Wells sabe que foi adotado por Charles Wells, o milionário inglês, e detém uma audição fantástica, tanto que ouve o quê o burro fala e até o quê o Diabo pensa. Quando se instalar na Catinga, se unirá aos irmãos, ao padre fedorento e ao Conselheiro Tomé, e os cinco tentarão decifrar os enigmas profetizados pelo grande Moraes Moreira.

Samir Raad ignora que é filho adotivo do empresário libanês Michel Raad, mas é o único que sabe ter uma missão, pois foi sacristão de Libório, que lhe abriu os olhos e o instruiu a comandar os poderes da visão com destreza, recomendando que deveria tomar cuidado para não ver além dos limites sagrados, e estar apto quando chegasse a hora prevista para o ciclo de revelações que os levaria aos desígnios por Deus traçados. Ao encontrar os irmãos, vai conhecer a história de fé e coragem que São José, o santo, reservou para os Missionários dos Sentidos e para todo o povo da Catinga.

Tomé, o conselheiro, apesar de dominar a fala e o dom da retórica mais do que muitos humanos, é um burro com o qual o ex-senador Venâncio, pai do Prefeito Francisco Argôlo, o Chico Jumento, presenteou ao padre. Ele jura já ter sido gente, e seu paladar apurado é sua fonte de prazeres e descobertas; mas vão demorar pra descobrir que se trata do quinto incógnito citado pelo Profeta Moraes Moreira. Ele é o filho legítimo do viúvo Michel, Jessé Raad, belo rapaz de vinte e três anos que teve a alma aprisionada em um asno pelo Doutor Fogueira, ilustrando os caminhos rabiscados por São José.

Em 2001, prefeito há quatro décadas, Chico Jumento tem setenta e um anos, poucos meses a mais que o padre, que é seu querido, mas que não lhe convence com a história de que um milagre está por vir, nem que Demóstenes Fogueira, empreendedor do progresso, seja o capeta em pessoa. Ainda mais quando vê Libório conversando com o quadrúpede que escolheu o próprio nome e que só o padre, Guido e Lu conseguem entender.
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Mesmo desacreditando, Francisco Argôlo é o responsável pelo Milagre de São José, santo com o qual costuma conversar em sonho e para o qual, acordado, reza dias e noites pedindo para que a praia se aproxime e tire o insuportável futum da cidade, como nem ele sabia ser de fato possível. Mas, como já estava escrito, Chico é o pai dos trigêmeos das profecias. Nada que ele soubesse, mas que a tentação pela carne acabou o enredando.
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Entenda bem:
Em 1974, ele conheceu a impagável Nanete faz Milagre, uma menina linda que batalhava num dos bregas de Vila Miséria, irmã de Romilda, outra puta sofredora que não era tão bonita quanto ela e que a invejava por demais, por não fazer ganhos iguais. Após acertar a quantia combinada com Zefa, a cafetina, Chico dá uma pequena fortuna à Nanete, por ter se divertido bastante e se fartado como nunca, mesmo sendo um garanhão.
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Feliz da vida, ele volta pra sua cidade, e ela e Romilda vão embora da casa de tolerância, dispostas a mudar as suas com o dinheiro que carregam, assumir seus nomes verdadeiros e comprar uma casinha que Nanete viu estar à venda, em Lomanto Júnior.
Naquela noite, a prostituta engravidou e recebeu o perdão do Absoluto, que aceitou os pedidos de clemência feitos por São José, o pai de Jesus, há mil e quinhentos anos, antes mesmo das profecias de mil anos do enigmático Moraes Moreira. Mesmo querendo demais uma menina, na noite de Natal, ela dá luz três meninos, um igualzinho ao outro, porém não tem a chance de conhecê-los, pois entra em profundo coma que se estabelece por seis anos, e, por fatalidade, tem os filhos vendidos por Romilda, que odiava crianças.

Em 1980, quando volta ao mundo dos vivos, Maria Santa não lembra nada do que vivera até então, tampouco que um dia adotou o pseudônimo de Nanete pra ganhar a vida. Sabe apenas que, conforme lhe informou sua irmã Verônica, ela é uma virgem recatada e humilde, nunca namorou, nunca teve dinheiro, nunca trabalhou e sempre dependeu dela pra sobreviver; faz voto de castidade por considerar seu retorno um milagre, e todos os anos encomenda missa de ação de graça pela glória alcançada.
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Estava escrito: a pura não sabe que cumpriu um carma escatológico em nome do bem, muito menos que gerou três missionários, nem que, por obra divina, foi banida do círculo do mal: a luxúria que a refestelou em dias de meretrício, regados a ódio, urina e cocô.
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Maria Santa não fugiu do rascunho. Surpreendentes revelações virão à baila na vida desta mulher que não se interessa pelo amor a dois, pois, ao se reencontrarem, ignorando que já se conheciam do brega de dona Zefa, o velho Chico e Maria se apaixonam e nem desconfiam que o destino já tinha lhes reservado o pecado para o enlace, consumado há vinte e poucos anos. Ele nem imagina que é a criatura endiabrada que lhe proporcionou o melhor prazer carnal de toda sua vida, a santa senhora a qual quer desvirginar. Será que o safado ainda consegue fazer isso? Só milagre!
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Seu José dos Santos, seu criado, como ele costuma se identificar, gosta de puxar conversa, contar causos e reclamar do bodum da cidade, protagonizando gafes em supermercado, sacolão, cinema e etc., tanto que é o conversa-fiada das filas da Catinga, e ganhou o apelido de Cata-fila.
Na verdade, numa participação especial, com aparições esporádicas, ele é o próprio São José que, sem que ninguém suspeite, de terno branco e gravata azul celeste, infiltra-se na história como um cidadão que por ali está de passagem, um simples operário a mando de um Senhor muito exigente e rigoroso; um servo de Deus.

Predestinada aos sete pecados, essa cidadezinha onde Demóstenes mora desde a criação do universo é terra em que o mau cheiro impera, porque está localizada próxima à grande fossa, 40km de merda de um povo cagão a separam do litoral paradisíaco. É também a cidade das duas caras, onde celulares não funcionam e o extraordinário ganha forma, tudo porque Lúcifer guarda o inferno dentro de um cofre em sua cobertura, de onde também influencia Osama Bin Laden a planejar o ataque às torres gêmeas.

Em épocas distintas, com a finalidade de socorrer aos necessitados de apoio no duelo entre Deus e o Diabo, três anjos do bem foram enviados à Catinga, entretanto, com o tempo, eles envelheceram e não lembram mais quem são nem pra quê estão, pois foram engolidos pelos pecados e não cumpriram a missão para qual o santo os destinou. Dois deles são Jomar Jesus, o farmacêutico galanteador, dono da Farmácia Central de Atendimento Médico J. Cristo., e seu filho Regino, um adolescente virgem que só vive se masturbando no banheiro da loja. "Quem é o outro?" é um mistério que os missionários vão ter que desvendar, pois, para que o exército contra o mal esteja completo, estas divindades precisam ser resgatadas.
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Voltando no tempo...

No ano em que Maria Santa gera os trigêmeos, o padre e o sacristão Rabello vão a Porto Seguro em busca de Seu Peixoto, um homem que se diz o dono do mar e de tudo que nele está, inclusive dos peixes que no oceano se pode pescar, e que, segundo mensagem anônima, lhe entregará a chave que abre o baú onde estão as Profecias de Moraes Moreira.

Nesse dia, Libório, padre fétido e arrogante que busca ser menos guloso e menos vaidoso do que fora até ali, começa a cagar ouro de qualidade inquestionável e questiona a própria postura, avaliando o quanto fora insensato com seus fiéis e com a vocação que abraçara. Ele não poderia imaginar quanto questionamento ainda estaria por vir.
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Retornando a 2001, o ano em que os missionários se encontram, o fantástico ganha força e rola solto, e de uma forma ou de outra, até quem é de fora não escapa de permear as vielas dos escritos. É o caso de André Rita Júnior, o carioquinha de dez anos que não conhece o pai, o boxeur Montanha.
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Por um pequeno descuido da mãe, o franguinho sai da favela do Quitungo pra Guadalupe em busca do pai e tem a sorte de encontrá-lo, mas, antes que seja visto, descobre que André está de partida pra São José da Catinga e não se apresenta como o filho para o qual não quer pagar pensão.
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Júnior vende a bicicleta, o video-game e tudo mais que tem, e viaja no mesmo ônibus que seu pai, sem que este saiba quem ele é.
Esperto, o filho o convence que se chama Luciano.
- Pode me chamar de Lu. – diz, com segurança: - É como todos me chamam.
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"Aquele que foge pra transformar vidas está ligado a todos que necessitam de ajuda, e em sua cabeça há de estar um fio do coração falante, que abrirá acesso do corpo pra alma, para que o mal subtraia a si mesmo, como um sistema detector que pode eliminar o vírus".
- Bacana! – diz o menino, ao ler os escritos e se dar conta do dom que possui: - Esse Profeta Moraes Moreira já falava em linguagem interativa, tá ligado? Comunicação direta onde quer que você esteja, pra onde quer que queira mandar ou receber a mensagem, basta ter a energia adequada.
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Na cidade onde tudo acontece, São José o delega o poder da telepatia, e ele vira um tipo de anjo da guarda do pai, um sentinela sagaz que o livra de encrencas e fica cada vez mais seu amigo, um amigo especial que, toda vez que dá uma bola ao lutador, se orgulha de ouví-lo pensar:
- Acredita que eu queria que, por milagre, esse moleque fosse meu filho?
- Acredito. – responde o guri, mesmo sabendo que André não lê sua mente.
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O sumiço de Lourdes Maria, menina de onze anos, é um mistério nunca esclarecido, e permanece na curiosidade do povo da Catinga desde 1913.
Na realidade, ela descobriu que Demóstenes era o mal em carne e osso e tentou alertar Venâncio, rapaz de vinte e cinco a quem fora prometida assim que nasceu, e que sonhava em debutar no mundo da política. Mas, antes que a senhorita revelasse o quê sabia, o maligno não a poupou... Doutor Fogueira sabia que o filho do fazendeiro Benedito Argôlo odiava felinos, e condenou Lourdes a viver como uma gata até o seu centenário. Ela tem pavor de ir à rua e não sai da casa onde morou com os pais, os avós e os irmãos. Hoje, Lourdinha foi batizada de Andressa pela soteropolitana Ana dos Perfumes, sua nova dona, dona de uma famosa perfumaria que, em busca de novas fragrâncias, alugou aquela casinha antiga da Catinga e se apaixonou por Libório, o homem mais podre do lugar.
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"Se vão as partes, mas o espírito é completo." - são frases ditas nos escritos: - "Isso se emprega aos cegos, mudos, surdos, leprosos e qualquer outro que nasça ou que, ao longo da vida, se torne deficiente. Por isso o incrível é susceptível, para que o impossível seja identificado, porque ele só existe quando está parado, porque tudo que é possível voa".
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Ana descobre o amor ao conhecer o padre, mas Andressa vive o drama de não saber se, ao término do feitiço, será uma senhora idosa ou uma linda mocinha, já que está gostando do menino Lu, que consegue ler sua mente e que lhe deu coragem pra sair da casa onde se confinou, e se deslumbra com o progresso da cidade, que não tinha nem igreja.
- Que dirá uma bonita assim, com telhado de vidro e tudo! – ela pensa.
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Jacylene Biafra, a Bonitinha, é a caçula do Senador Arnaldo Galdino Biafra, o AGB, e é louca por Samir Raad, que é noivo da filha de Verônica Novaes, Querubina, que é doidinha pra ser mãe, mas esconde que isso é impossível, pois, por câncer de colo de útero, teve que extraí-lo.
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Sem perceber que não se trata do amado, numa investida muito mal entendida, Bonitinha engravida de João Maria e a ultra-sonografia mostra que eles serão pais de um casal. Nesse ínterim, Querubina tem gravidez psicológica, seus seios, seu quadril e sua barriga crescem, e ela imagina ter sido agraciada por São José daquele lugarzinho malcheiroso.
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As ex-rivais, que passaram a adolescência disputando o primogênito dos Raad, se tornam amigas inseparáveis e dividem confidências de quem está pra ter a graça de ser mãe. Almas gêmeas, no Natal, elas sentem as dores do parto na mesma hora, no mesmo hospital.
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Bonitinha dá luz quadrigêmeos, um casal parecido com ela, o outro com Querubina, que se decepciona ao saber que não houve milagre, pois não tinha ninguém em seu ventre. Só mesmo um exame de DNA, nova moda na cidade, provará que Lusmar e Marluz são filhos de João Maria Callado e Jacylene Biafra Callado, porém, Joseph e Michelle são filhos legítimos de Querubina e Samir Raad, que são primos de primeiro grau. Num gesto de nobreza, João e Bonitinha entregam os bebês ao casal. Milagres acontecem!
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Ferro-velho e Euzébia Barbuda se parecem que Deus me livre! Mas ambos abominam a idéia de ter a mesma face, com a diferença que a fofoqueira que não sai da janela tem barba, e o carroceiro é tão desprovido de pêlos que só os tem no couro cabeludo, nem na região genital o cara tem um fiozinho pra contar história. Coisa de bebê! Tudo porque, quando eram adolescentes, ele passou em frente a eles, quando a faladeira pisou no pé daquele velho que nunca envelhece, o dono do hotel, que a amaldiçoou e aí...
- Não sei porque o povo diz que pareço com esse homem feio e sujo. Logo eu? Cheirosinha e fofinha que só... - diz a sósia, ao ver a carroça de Ferro-velho.
- Não sei onde esse povo vê parecença. – diz o sósia: - Essa velha feia tinha que ir prum circo, e eu preferia nunca ter visto isso na vida. Crê n’eu?
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Abílio e Mário Bandeira são gêmeos idênticos que dividem a administração do Bar dos Bandeirantes. O primeiro é o empregado, e o outro é o dono.
Mário trabalha do finalzinho da tarde até o início da madrugada, e Abílio toma conta da loja durante o dia. Eles nunca são vistos juntos, pois quando Abílio volta pra Boi da Ema, onde é noivo de Sueli Regina, Mário ainda não veio dos afazeres que abastecem seu comércio. Camundongo, adolescente surdo e mudo que na verdade é filho de um deles, é quem toma conta do estabelecimento enquanto um dos irmãos não chega.
Abílio é um homem honesto e trabalhador; é ele quem limpa e organiza a loja, e é ele que, mesmo sendo calado, atende fornecedores e garante a freguesia, preparando os pratos do dia e deixando semi-prontos os petiscos que serão servidos à noite. É nessas ocasiões que entra Camundongo, fiel escudeiro dos Bandeira, que finaliza-os sob às ordens de Mário.
Abílio é um cara boa-praça que tem medo que o patrão lhe demita e lhe dê umas porradas, como faz desde que eram criança. Já o outro é a arrogância em pessoa, é pedante que só ele, e trata a todos como bosta. Se não gastar, ele não dá nem bom dia. Cerveja? Bebeu a primeira e demorou a pedir outra, Mário já vem abrindo nova garrafa pro freguês perder um qualquer e não ocupar cadeira à-toa. Como pode? Gêmeos e tão diferentes.
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Como em toda cidade que espera que milagres aconteçam, esta não poderia deixar de ter suas beatas, lideradas pela viúva Lola, que, quando o falecido começa a atormentá-la, abandona o posto de presidente do Clube Cristão da Terceira Idade e o passa pra outra viúva, dona Nitinha de Santo Antônio, figura que organiza as missas de ação de graça, quermesses e passeios para o padre fedegoso, e que é apaixonada por seu Abílio, a quem costuma assediar com muita cautela, mas odeia seu Mário Bandeira, espertalhão que lhe diz as indecências que ela gostaria de ouvir do pacato.
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De fato, Mário morreu em 1986, mas ninguém sabe nem poderia saber. Sozinho, Abílio Bandeira o enterrou no cemitério de Boi da Ema, e pra não esquecer o irmão, que era intragável mas que lhe deixou bem de vida, assumiu a dupla identidade. Que coisa!
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E como cada personagem que mora em São José tem a vida marcada por uma manifestação surrealista, não é que, no velório do radialista e professor Nestor Melgaço, Tomé resolveu mijar na cova do Corno Dico? Acabou que o xixi do burro acordou o espírito do falecido de dona Lola, que veio de além-túmulo pra infernizar com a viúva, aparecendo só pra coitada e exigindo que ela se casasse com Abará, um velho fofoqueiro, broxa e asqueroso, escrevente do Jogo do Bicho, cujo ela vive praguejando.
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Mas isso não é mais doloroso do que o profeta escreveu pro radialista e pra Fedeu, ambos descritos como almas que experimentariam o duplo.
Foi previsto: "O santo guerreiro terá mau cheiro por dez mil, novecentos e cinqüenta dias, e ressuscitará quatro almas perdidas do pai. Quando a primeira vier, ele dividirá o quê tem como se nunca fora seu".
Nestor morre e volta pra certificar que a mão do padre salva até fiéis mais debochados, e só mais tarde percebe que, após trinta anos de necrológico castigo, o iluminado transferiu toda fedentina de bode e vala pra ele, que teve a morte revertida numa catalepsia proposta a assustar ao povo e a cumprir a profecia. Coisas de Deus, de São José e de Moraes Moreira!
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Por mais que ninguém saiba ou queira saber, Tolstoi é o nome de Fedeu, um mendigo metido à cheiroso, que apareceu do nada e de mansinho foi ficando.
- Fedeu! – ele diz ao avistar padre Libório, e faz todos rirem como quê, mas acaba ouvindo um sermão do sacerdote.
Tolstoi esconde que é filho do assessor do prefeito, Barnabé, homossexual do qual tem vergonha, mas que todos pensam que eles têm um caso sério.
Nem Francisco nem Nestor sabem, mas eles também são pai e filho.
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Em dado momento, por providência divinal, daquelas que faz doer o calcanhar, a alma de Fedeu se expande além do corpo e ele se vê dividido em três, e tem a chance de optar a qual dos fantasmas seguir: seu lado bom, que é humano e aceita Barnabé como ele é, ou seu lado ruim, que usa ternos pretos e sofisticados, ostenta sabedoria e universalidade e tem repulsa pelas pessoas comuns, cobiçando-o pela ganância e pela própria ignorância.
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Quem também tem a sua desdita é a cafajeste que vendeu os bebês de Maria Santa, que, ao dizer a Seu José dos Santos que queria ser trinta anos mais nova, se vê duplicada. Romilda, sua versão jovem, surge para lhe ameaçar a contar quem foi e quem é Verônica.
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Além da incomparável fossa entre São José e a Praia da Catinga, o quê a distingue das outras cidades são as construções mais recentes, que são visionárias, todas de vidro, produto da imaginação de Guido Valente, quando o rapaz ainda era só um garoto prodígio.
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Surpreendendo a todos que imaginavam que o milionário inglês tinha a pele clara, Charles é preto e foi quem enviou as profecias ao padre, e foi também o responsável pelo progresso arquitetônico do vilarejo que virou um belo município, a coisa mais arrojada do Nordeste, mantendo intacto o já erguido e aplicando os desenhos do filho, que vislumbravam vidros nas fachadas antigas e nos novos projetos, alguns com transparência.
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Charles é brasileiro, nascido na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, e foi adotado pelo casal Wells, que não era fértil e que o levou pra Inglaterra, onde herdou tudo o quê tem. Chegando à cidadezinha dos diabos, ele descobre que era irmão gêmeo do falado Carambola, indivíduo que morreu de conversa-fiada, marido de Bastiana, a governanta do prefeito, mãe de Adeilza, a morena nova do acarajé gostoso, e de Jorge Amado, o poeta de ouro que corteja Dália Bragança, a tímida filha do padeiro.
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Enviado a São José para ser o presidente da filial da Construtores Wells & Wells, Guido se impressiona quando chega na cidade que ele criou, mas aos poucos vai entender que aquilo também já estava proposto, pois, sem que soubesse o porquê, traçou as linhas do pentágono onde se daria o milagre, derrotando o Demônio e trazendo o paraíso pra perto.
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E já que falamos em sete pecados, não poderíamos esquecer do Palácio das Delícias, comandado pela cafetina Jerusa, onde sete mariposas recepcionam aos que tem posses, mas algumas não deixam de ter um xodó com a ralé, como é o caso de Bárbara Elza, uma negra de fazer parar o trânsito, que é a melhor amiga de Barnabé e tem romance com Fedeu, e que, desde pequena, encontra Seu José nas filas da vida e dá corda pro conversê.
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Encomendada por São José e transmitida por uma lepidóptera azul, com a finalidade de moralizar comportamentos que somarão no embate com o carcará, uma tal Febre de Santo Antônio assola os corações dos cidadãos catinguenses, que danam de vontade de querer casar, daí o apelidinho de Febre Casamenteira, coisa que quase ninguém escapa.
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Caçulinha do palácio, Ida León fica caidinha pelo radialista gago e encrenqueiro. Eles nem chegam a se enforcar perante a benção do padre, mas ela já se diz viúva do cabra; e mesmo que Nestor Melgaço tenha voltado à vida, sem a costumeira gagueira e com o troço permanentemente ereto de fazer inveja e vergonha, Ida não aceita a idéia de deixar o luto.
- Tô achando que minha estrovenga só há de baixar se a gente fizer amor. - diz o nauseabundo.
- E quem foi que te falou que defunto tem direito de fazer amor? – ela rebate, disposta a encarar viuvez: - Bom pra falecido é missa de sete dias, de ano, e muita oração pro sujeito repousar o esqueleto insatisfeito e descansar a alma. Vá esticar os pés numa cova, seu morto-vivo, porque seu tempo de diversão aqui na Terra já passou. Vá xispando, cadáver de meu marido, porque sua terra agora é outra, sete palmos abaixo de onde eu estou.
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Ex-amante do finado Dico, fundador do Clube Catinguento Futebol Sul, até certa altura, Helena de Tróia quer que o banqueiro Ananias Guimarães lhe tire da vida, casando com ela. Por ser a menos producente das auxiliares de Jerusa, resolve abandonar o meretrício e muda pra um dos quartos que Lola aluga em sua casa, onde é beijada pela borboleta azul e se encanta por Ananeuza, neta da beata. Elas mergulham no amor e decidem ir pra Tróia, terra de Helena, bem pertinho de São Miguel do Chinelinho.
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Marijuana tem chamego com Pezinho e é doida pra deixar a putaria. Melhor jogador do mundo, artilheiro do Catinguento, o rubro-negro dos catinguistas, filho de Mercêdes, a irmã de Barnabé, Pezinho é um típico baiano preguiçoso, que falta treinos e que não está nem aí pra começar a pensar em casar; a tudo ele gosta de adiar, mas vive dizendo que só quer saber de Marijuana, morena belíssima que é atacada nas nádegas pela transmissora da febre e cisma que quer ser levada ao altar, de véu, grinalda e festança na praça.
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Paixão da vida do Sargento Garcia, com quem pretende se enlaçar e ter uma penca de danadinhos, Lorrane Solange é a puta mais atrevida e mais mandona que já se viu na face dessa terra podre. Por mais que queira o policial pra toda vida, ela se faz de durona, jurando que, se ele quiser fazer amor, tem que desvendar o mistério do Cavalheiro Negro.
- Sem o nome desse mascarado, nada de fornicar na bacurinha danada. – morta de curiosidade, arremata: - Comigo é assim: ajoelhou, tem que rezar. Tem que escrever e ler, se o pau quiser comer.
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A biriteira Simone de Bom Suar tem idade pra ser a mãe de Jerusa, mas é fogosa e é quem mais fatura no estabelecimento, a melhor do mês em vendas, como diz a cafetina; atende aos de baixa renda e até à molecada na flor da ebulição, alguns levados pelos pais. Todos que desfrutam da sua cama chegam ao delírio e suam até pegar fogo, literalmente.
Com a Febre Casamenteira, a sexagenária os deixa em polvorosa. Ela cai de amores pelo Coronel Gerúndio, o segundo maior produtor de cacau da Bahia, e vai viver em Sampa como uma perua chique.
E os dois beberão felizes para sempre...
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A sétima é Haydê Fromer, a serelepe. Aficionada pela natureza, ela acha que quem tem um, não tem nenhum, e tem certeza que homem é biscoito: vai um, vem oito, dezoito, vinte e oito, trinta e oito, quarenta e oito...
Por isso tem dois pretendentes com os quais marcou casamento pro mesmo dia, Edson Bragança, o padeiro, e Rafly Guimarães, filho de Ananias e maior ídolo do Catinguense Futebol Clube, o time da oposição, o tricolor dos catinguenses. A faceira não casa com nenhum deles, pois é ela a borboleta que se transforma em gente, enviada por São José para transmitir ao povo a vontade doida de se enroscar, e é assim que Rafly encontra o amor nos braços de Vilma Teresa, mãe de André Rita Júnior, e Edson acaba voltando pra ex-esposa, Rivadávia, empresária do ramo da moda com quem tem três filhos e que vai à Catinga pra reconquistá-lo.
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Proprietária do palácio e amante de Chico Jumento, Jerusa Cavalcanti se candidata à vereadora a seu pedido, mas quando tudo indica que ela vencerá nas urnas, a loura é tomada pela quentura e se apaixona pelo banqueiro Ananias, que a convence a renunciar à política, ao caso com o prefeito bem dotado, à administração do meretrício, que vira uma instituição de educação para moças de moral, e a se tornar a Madame Guimarães.
Sobra pra Bastiana, a governanta que passa a ouvir o seu nome nas rádios e carros-de-som, e que vai perder o sossego ao ver sua imagem explorada pela televisão e estampada em out-doors espalhados por toda a Bahia.
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Mas não são só as putas locais que desejam contrair o bom laço do matrimônio. Moças de boa família e beatas virgens ou viúvas saem de cima do muro e se arrumam no rol da febre; começando por dona Nitinha de Santo Antônio, que já traz o santo no nome e que consegue fisgar Abílio, que revela que Sueli não passava de ficção, tanto quanto Mário, antipático o qual cultuou mesmo após a morte, emprestando o corpo feito um médium.
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Dona Lola acabou se contentando com Abará, um porco em forma de gente. Há quem diga que, pra não correr risco de ele querer voltar à sujeira, ela que dá banho nele, seca o bucho e as partes, passa-lhe talco e perfume, e até lhe veste a roupa. Quem diria, né? Não foi obra do Corno Dico, o espírito vagante, foi obra de São José e da lepidóptera missionária. Menos mal! Assim, a viúva se ocupa e não tem tempo de falar da vida alheia.
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A bibliotecária Conceição Munhõz, neta preferida de dona Lola, é uma falsa carola como a avó, e de virgem só tem o signo e nada mais. Está doida pra unir os panos de bunda, mas rejeita a investida do farmacêutico Jomar Jesus e é rejeitada pelo boxeur Montanha. Desencantada, ela é sugada pela borboleta azul e acaba casando com Armando, dono do Cine Bogus, um partidão pra quem sempre a pudica dá trela na hora de chorar as mágoas.
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Professora primária do Colégio Estadual Dias Gomes, chamada por todos de dona Mocinha, Diana tem sessenta anos e é moça-velha. Mordidos pela mariposa, ela e Charles copulam e vão pra Londres, onde ele passa a chamá-la de Lady Di, e ela volta metida que só!
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Vinte e cinco frondosas primaveras tem Dália Bragança, a professorinha que não se reconhece como criatura de lindeza abençoada. Ela não vê graça no mundo real e vive romanceando o impossível, usa óculos com lentes grossas, aparelhos nas arcadas dentárias e um cabelo castanho escuro e escorrido até a cintura; só é beata por falta de auto-estima, pois é rejeitada pelo pai, que a chama de bicho feio, o quê a faz cobrir o corpo com roupas folgadas, do pescoço aos joelhos. Ao ser tomada pela febre, a desprezada mudará o visual e se transformará na modelo exclusiva da grife de Rivadávia Epaminondas Bragança, e tentará descobrir quem é o Cavalheiro Negro, versão do Zorro da Catinga, que inicialmente lhe envia poesias e cartas anônimas, e, depois, montado em seu cavalo branco, com flores e mistérios que só a noite tem, lhe promete amor eterno e tenta chegar ao assédio físico. Quando descobre que é Jorge Amado, ela revela que sempre quis ser de um homem negro.
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Das beatas pras adolescentes, Gardênia é a caçula queridinha de Edson e Rivadávia. Apaixonada pelo ator Hélio Quintino, quando é apresentada a Claudemir, o primeiro neto adotado por Venâncio(já que pensava que Chico não lhe deu unzinho pra contar histórias), ela não percebe que o capiau é a cara do seu ídolo e vive chamando-o de intrometido, grosseirão, inculto, bicho do mato, das cavernas e etc. Acometida pela febre, aos poucos vai ser seduzida pelo charme rústico e dominador de Clau, que é real.
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Caçula de Verônica, Amora dos Prazeres se recusa a chorar desde que o pai sumiu, pois acredita que Tonhão esteja vivo e que um dia voltará pra casa.
Quando Bonitinha perde a pureza, perde o dom que tinha desde criança: conversar com os desencarnados que ela não conseguia ver, mas captava tudo o quê diziam. Como São José perdeu esta auxiliar, restou-lhe selecionar outra virgem pra colaborar com sua miraculosa causa, e pra surpresa dos envolvidos, a cambalacheira Ondina Feio Callado, ou Madame Cleide Não Precisa Dizer Nada, mãe adotiva de João, é donzela e é requisitada.
Através da nova sensitiva, Tonhão diz à filha que Verônica o assassinou, e, de tanta emoção, a mocinha desata um pranto roxo de saudade que provoca uma enorme enchente, e todos acham que está se realizando o ansiado Milagre de São José que tanto o padre podre espera; parece sonho, mas, aos poucos, as águas com gosto de amora tomam seu curso e a cidade inebria-se com uma inacreditável sensação de prazer, e nem parece que o povo está na Catinga, é um momento único.
Nesta hora, aos catorze anos, misto de angelitude humana e intempestiva tormenta, a doce Amora é alvejada pela borboletinha azul, a sapeca que atiça, segura e amarra o tchan, tchan, tchan, tchan, tchan... e a jovem é despertada pela paixão e começa a ficar com Rivelino, o do meio de Edson e Rivadávia. Escondido, é claro! Porque a sucuri jamais que ia deixá-la namorar um herdeiro de padeiro, e a modista não ia querer seu único filho homem enrabichado com a filha de uma megera que tem duplicata.
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E como santo que é santo não deve e nem pode ter preconceitos, Radamés Dias, negão de picar, é picado pela azulada e assume publicamente o affair com Barnabé, que é trinta anos mais velho e que trouxe o teúdo e manteúdo de Itacaré pra viver um xodozinho. Com o milagre, o surfista deixou de ser preguiçoso, se apresentou à família do assessor do prefeito e caiu no mundo dos negócios, abriu uma agência de turismo, criou estacionamentos na orla em convênio com Chico Argôlo, e, principalmente, passou a sustentar seu companheiro, que hoje só acorda cedo pra ser o primeiro a desejar um incomensurável bom dia aos vizinhos.
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E já que o santo permitiu que toda forma de amor valha a pena, esta história tem outros gays apaixonados. Um deles é Mago Estorinni, estilista da grife Rivadávia Bragança, que se encanta por Camilo Sátiro, anjo-mau que não o corresponde, e que, ao morrer na inundação promovida pelo arrastão do mar até São José da Catinga, o deixa arrasadíssimo.
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Irmão mais novo de Montanha, Elias Rita é um homossexual não assumido que, pela primeira vez, tem a sorte de se unir a um alguém que o respeita e o quer de verdade: Guido Valente Wells, o Missionário da Audição.
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Jovenal Rita, o Avenida, é um motorista de praça que sempre quis ser escritor. Amigo de Samir, a quem recepcionou quando este esteve no Rio, o septuagenário se impressiona quando, no mesmo dia, conduz João Maria à rodoviária e Guido ao Galeão, ambos de partida pra Catinga, terra de Raimunda Ribeiro Rita, ou simplesmente Mundica, sua venerada esposa, com quem está estremecido por não aceitar a opção sexual do filho.
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Em busca de uma história com surpreendentes mistérios, ingredientes que o farão virar personagem do que escreve, o taxista vende todos os bens e parte com a família pra cidade catinguenta, a fim de desvendar por quê os gêmeos não se conhecem. Ele não contava com o quê estava por acontecer, nem sabia que tudo estava escrito. Almas gêmeas, Avenida e Mundica trocam de corpo, e ele, apesar da corte de Adail, tio de Mercêdes, experimenta o sabor intransferível de ser mãe e aceita Elias como ele é.
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De visita à casa onde viveu a adolescência, onde hoje mora Ana dos Perfume, Mundica Ribeiro encontra uma gatinha que foi sua há um pouco mais de seis décadas, mas ela não acredita que aquela possa ser a doce Judith, o pior nome que já deram à Lourdes Maria.
- Nunca vi tanta semelhança. – ela constata: - Chego a ficar saudosista.
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O Milagre de São José.
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Por intervenção do santo padroeiro da Catinga, que é uma divindade porreta, o Altíssimo concedeu o inimaginável, que só veio bem lá pro finalzinho do ano de 2001. Tudo aconteceu como Moraes Moreira anteviu: Demóstenes não decifrou os enigmas que Camilo conseguiu duplicar, e, iludido de que o conjunto de gêmeos que garantiria o dito pentágono eram as famigeradas torres de New York, insuflou a mente do terrorista Osama pra que destruísse os supostos vértices de São José, em Onze de Setembro. Não sabia o Demo que os gêmeos viriam em três e não eram construções, eram humanos. Não sabia ele que o pentágono, desenhado pelo menino Guido, não se aludia aos EUA, e era uma força invisível onde a igreja com telhado de vidro transparente era o centro, energia da qual estariam fora a fossa e o Grande Hotel, casa do mal, banida do mapa astral. Não sabia o Demo que o extraordinário se daria ali mesmo, onde ele plantou o supérfluo, os pecados da gula, da vaidade, da ira, luxúria, cobiça e etc. Por isso, a terra se mexeu e uma rachadura de 40km se formou nas profundezas do oceano, movendo as águas e levantando ondas de mais de cem metros de altura, e essa enxurrada de fantasia nos fez crer no impossível e varreu o vilão da podridão, o valão das fezes liberadas pelos habitantes da Catinga, gente que só tinha um rio pra desembocar sua porcaria, e que hoje tem um marzão na porta de casa e deixou de ser catinguense pra ser milagrense, como queria o Prefeito Chico Jumento, e a cidade passou a se chamar São José dos Benditos Milagres.
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Conforme foi dito, quando Netuno declarou guerra ao Sujo, Libório, ajoelhado e com as mãos atadas numa reza incessante, não percebeu que o Missionário da Visão estava hipnotizado com a aparição de São José, o qual constatou ser José dos Santos, o Cata-fila, que parecia um surfista na crista da onda, sobre a catástrofe dos deuses. Jessé, ainda no corpo de Tomé, clamou pro irmão fechar os olhos, mas o mais velho dos filhos do libanês não entendeu a língua do animal e se manteve atento, perplexo com a presença do santo. Neste momento, João sufocou-se com uma abrupta parada respiratória, uma poça vívida de sangue foi derramada dos ouvidos de Guido, e Tolstoi bestificou e foi engolido pelas águas.
Cumpre-se a profecia: "Aquele que detém a vigília da luz não pode avançar além dos limites sagrados. Assim feito, todos os domínios migrarão para escuridão que o habita".
Quando a natureza acalmou, o mar estava cravado na calçada de São José, agora uma cidade litorânea, belo balneário com uma cortina de coqueiros esplendorosos, mas dois dos trigêmeos e Fedeu não passavam de corpos sem vida, estirados no facho de areia; Tomé já não falava mais e parecia zangado como o Diabo. Foi uma choradeira que só! Bárbara Elza, Bonitinha, Elias, Michel, que estava numa cadeira de rodas, Chico e Maria...
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Jessé, nu e já em seu corpo, que tinha sido temporariamente tomado pelo Tinhoso, surge do nada e vai ao encontro de seu pai, que, em mais um milagre, se levanta e o abraça. E como conselheiro que fora desde que renascera em um burro, ele cita parte dos escritos, e Libório se dá conta de que ainda tem três almas perdidas do pai a ressuscitar.
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O padre põe a mão nos cadáveres e, para felicidade de todos, traz João, Guido e Tolstoi de volta à vida, ganha asas e voa para os céus; era ele o primeiro anjo enviado por São José.
O mendigo deixa de se dividir em três, e os dois irmãos perdem o dom singular, entretanto, cego, Samir passa a deter todos os poderes fantásticos: olfato, audição, paladar e tato, e desenvolve um sexto sentido que o faz agir como se tudo estivesse enxergando.
Camundongo também é consagrado: passa a ouvir e começa falar pelos cotovelos, revelando, inclusive, que sempre soube que Abílio, seu pai, e Mário eram a mesma pessoa.
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um novo tempo...

No ano de 2002, a cidade espera que o finado Missionário do Tato seja canonizado, e romarias de todo o Brasil e do exterior vão a São José para rezar em busca de curas e milagres, e o Diabo é um burro empacado na praça, bem ao lado da igreja de vidro, onde o novo enviado do bispo de Salvador, Narciso da Silva, padre que, tal qual Libório fazia antes de ficar fedorento e carequinha com a maldição da catinga, vive penteando a vasta cabeleira, dorme enquanto reza a missa, só quer saber de comida, não faz caridade aos necessitados, explora e insulta aos fiéis, não gosta que o povo beije sua mão, vive se admirando no espelho e toma banhos de perfume. Será que o bispo não errou na escolha, não? Ou estava escrito?
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Euzébia, enfim, deixou de ser barbada, não tem um fio no rosto pra contar história. Já Ferro-velho está felicíssimo da vida com sua barba grisalha e seus pen... Deixa pra lá! Porque bom é pensar que eles estão livres da praga, e nem parecem mais cara e focinho.
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Nestor está livre da fedentina e da ereção deverasmente defuntesca, como diria o saudoso Odorico Paraguaçu. Acabou que Ida recebeu o mexeriqueiro de volta e teve gêmeos a dar em novela, uma conta incomensurável que ninguém acredita. E não serei eu, simples autor, a contar.
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Devido aos gêmeos que ela espera, Pezinho fica com Marijuana e não vai à Copa, mas Rafly entra na Seleção e traz o título de pentacampeão mundial, e é o artilheiro mais elogiado pelos maiores artilheiros da Terra, até pelos Fenômenos Romário e os Ronaldos. Que o Lobão me perdoe pelo trocadilho! Até porque eu acho que, no início da década de oitenta, o cantor famoso viu o poder do nome, coisa que não tem profecia que saiba driblar.
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Tolstoi casou-se com Bárbara Elza e deu três casais de gêmeos à família de Barnabé, dois meninos e quatro meninas, bebês que viraram o xodó do vovô coruja, e alguns são tão pretinhos quanto Radamés, vovô postiço que gosta de paparicá-los e que se tornou um dos melhores amigos do ex-mendigo, dando-lhe a gerência dos seus negócios na orla.
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Sem o problema que lhe impedia de andar, Michel está de namoro com Mercêdes e deixou para os filhos a administração do Complexo Gastronômico Brasil-Libanês, rede que aplaca do Oiapoque ao Chuí, sediada no Aeroporto Internacional Venâncio Argôlo.
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Jovenal e Mundica voltaram a seus corpos, e Júnior não é mais um telepata, mas em compensação, vive com o pai e ganhou avô, avó e tio corujas, e uma linda namorada, Andressa, que é um ano mais velha que ele e que adora mandar na relação. Vê se pode? Essas crianças de hoje em dia saem com cada uma, parece até que já viveram cem anos!
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Assim como a irmã Ondina, que está prestes a ser deflorada por AGB, o ex-vigarista Fernando Feio Callado, o Dão, está noivo de Adeilza e se tornou candidato a Presidente da República pelo PATO do B., Partido da Aliança dos Trabalhadores Operários do Brasil.
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Bete, amiga de Vilma, se casa com Jessé. Esse cara não é burro, não, hein!
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Por falar em burro, Doutor Demóstenes Fogueira consegue sair do corpo de Tomé e influencia Bush a contra-atacar o Afeganistão e a destruir patrimônios milenares de Bagdá.
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Em 2003, Barnabé, que nunca foi de beber uma gota de álcool, morre de cirrose hepática e toda a cidade se consterna. Mas esta passagem também estava escrita: ele precisava partir para reencarnar como Maria Benedita, sétima filha de Tosltoi e Bárbara Elza.
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2006, alcoólatra, Verônica explode de tanta cachaça, e, em segundos, Romilda tem um avanço fisionômico, e a versão da quenga de outrora deixa de ser jovem e assume a vida da viúva de Tonhão, mas ninguém aceita a puta velha, que abre um bordel na cidade.
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Em 2008, na entrada do Cine Bogus, na avant-première de Os Iluminados, filme baseado na história verídica do escritor Avenida, sobre a saga de Libório da Catinga, o santo guerreiro, o Mago Estorinni conhece Leonardo de Páprica, o ator que interpretou os trigêmeos, que não tem nenhuma semelhança com Samir, Guido ou João Maria, mas que é a cara de Camilo, só que afeminado, e eles se encontram num olhar que promete paixão e suspense, coisas entre o fim e o começo, como um dejaveaur costurado por agulhas de um anjo bom. Mas, o mais impressionante é o gênio que encarnou o sacerdote, Licurgo de Saint-Joseph, que parece gêmeo do homem que, por trinta anos, teve a missão de enfrentar o Coisa-ruim.
- Fedeu! – diz Tolstoi: - Ele é a cara do padre podre, cuspido e escarrado!
Sorte pro inconsolável coração de Ana dos Perfumes, que, no afã de encontrar um novo Libório, quer conhecer a essência das axilas da celebridade.
Azar do Prefeito João Maria Callado Argôlo e de São José dos Benditos Milagres, que tem o Cão de volta, com o propósito de se vingar de todos que o derrotaram. Só que agora como Dom Pedro Botelho Nogueira, o novo dono do Grande Hotel Cruzeiro do Sul; nem muito velho e nem muito jovem: encarnou a fórmula que achou mais certa, a mesma que usou por duas vezes, quando se fez passar pelo bispo de Salvador e enviou os padres Libório dos Anjos e Narciso Santos da Silva, como contam as recém descobertas Profecias de Renato Russo, de dez mil anos atrás, encontradas por arqueólogos na tumba de Gonzagão: "Mais uma vez, quem acredita sempre alcança, mas tem gente que não sabe amar".
Esse Diabo é burro que só! Não aprende que maiores são os poderes de Deus.
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Todo este enredo não passou de uma quimera disposta a descansar o corpo e elevar o espírito de um homem de rua, cidadão comum que virou um reles maltrapilho e que, ao abrir os olhos, depara-se com transeuntes que foram personagens de seu repouso encantado, da forma mágica que encontrou de transformar o mundo onde ninguém lhe percebe.
Na Avenida Atlântica, em pleno sol escaldante de verão, próximo à lixeira, Fedeu fica abestadíssimo com a capacidade que o ser humano tem de criar enquanto dorme, pois a fábula que viveu não passara de delírios noturnos de sua cabeça errante, que tanta sandice assiste nas calçadas do dia e da noite.
Ele nunca se chamou Tosltoi, e, na realidade, é um dos irmãos Bandeira, um maluco que vive da mendicância e fala consigo mesmo. Nunca foi comerciante, nem no Rio nem na Bahia, mas não sabe se é Mário, um doce, ou Abílio, o arrogante, pois, já que alguma coisa tem que ser real, um deles morreu em 1986, e o outro absorveu a dupla identidade.
Um dia, acorda Mário, no outro, acorda Abílio. Vê só!

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